03 agosto, 2007

O pica

Leva uma bolsa de couro a tiracolo e um boné. Pela forma como vai sem se agarrar, percebe-se que tem pés de marinheiro e o corpo calejado de pára-arrancas. Fala com quem o quiser ouvir, mas ninguém o quer ouvir. Também quer ouvir os passageiros, mas os passageiros não querem falar. Eu ouvi.
Mesmo de rosto voltado para a janela, o homem sabia que eu o iria ouvir. Deixou o seu posto, de pé, à porta traseira do autocarro (não um de dois andares, mas uma destas novas lagartixas), e veio sentar-se a meu lado. E então falou-me sobre as janelas do autocarro, as portas do autocarro e muitos outros pormenores técnicos. Explicou-me com argumentos e contra-argumentos num monólogo aceso o defeito dos novos autocarros: a perfeição. Conhecia muito bem os antigos – as madeiras que rangem, os couros gastos, os barulhos caprichosos do motor, o tecto demasiado baixo, a porta ameaçadora, sempre aberta, sobretudo aos corajosos -: sim, os routemasters eram imperfeitos, mas cheios de personalidade. Ouvia-se, falava-se – não só entre passageiros mas com o próprio autocarro. O tradutor, ou talvez seja melhor dizer, o intermediário do diálogo, era o pica. Confessou-me que tinha saudade. Mas nunca disse que tinha trabalhado num. Não era preciso.
Quando me levantei, o homem veio atrás de mim, saiu mesmo do autocarro e acompanhou-me a uns respeitosos metros de distância pelo passeio da High Street. Não por maldade, mas por instinto, um impulso. Como um cão vadio que segue quem lhe dá comida. A minha esmola tinha sido um sorriso.
Possivelmente há muito tempo que ninguém o olhava nos olhos. Normalmente, os passageiros desviam os olhos do homem que ocupa os dias a andar de autocarro.

12 comentários:

Anónimo disse...

Há coisas fantásticas não´há!!!!
É descobrir alguém que desconheço que escreve coisas lindas,e escreve muito bem.É quase um milagre.Obrigada pela emoção.EVA

Anónimo disse...

Fantástico post. ;)

Gostei muito mesmo. :D

NoKas disse...

:) Um bocadinho do calor do Sul nos corações cheios de chuva dos londrinos. :)

Anónimo disse...

Parabéns Susana!

Um texto maravilhoso!

Kika disse...

Um belo naco de prosa! Parabéns! Os picas fazem parte do meu imaginário infanto-juvenil e sempre achei que eles tinham esse niquinho de solidão que inspira a solidariedade.

Anónimo disse...

Há dias em que nos sentimos assim, como um "pica", que vagueia com destino certo por um mundo cheio de incertezas e solidão, na penumbra de uma ilusão.

Anónimo disse...

É impressao minha ou existiu aqui censura?..

Anónimo disse...

Qual censura, qual nada: houve apenas a partilha sentida de uma simples emoção!

Anónimo disse...

Queria dizer com "censura" foi que apagaram os comments anteriores aos que figuram aqui... parecido ao..

Anónimo disse...

Óh Eva Cura-te! Milagre seria se deixasses de fazer esses comentários idiotas. Mas quem é que a trouxe?!
Gatos? Pica? Homem de pedra? "parecido ao"? O que é isto?!!

Palavra Alada disse...

Parabéns! Foi um prazer encontrar este blog. :) Vou voltar

Anónimo disse...

Como já se foram esgotando os elogios, posso apenas dizer que é muito bom e difícil, para mim, encontrar um blog que me entusiasme e me lembre que também eu, em tempos, gostava de escrever sobre tudo.