15 maio, 2007

Pequeno-almoço

Acho que vi isto num filme. Devo ter visto num filme. Preferia ter visto num filme. Já não sei se vi num filme ou se aconteceu mesmo.
Tomava o pequeno-almoço em Covent Garden e na mesa à minha frente sentou-se um homem com a cara fechada – esse rosto caricaturalmente sério com que os actores de cinema se mascaram para serem alguns homens: homens que fazem parte de grupos criminosos, homens criminosos porque fazem parte de um grupo, homens que treinaram a memória para esquecer; homens que se trancaram, e nessa altura, desaprenderam a sorrir. Nem para a empregada bonita, de um bonito francês.
O homem mete a mão ao bolso interior do casaco de cabedal. Fecho os olhos. Quando os abro, o homem continua lá. Toda a gente continua no café francês. A empregada bonita passa. Outros clientes entram, sentam-se. Outros saem. Ninguém parece reparar no homem. Nem agora que deita ameaçadoramente as cartas sobre a mesa. As cartas escorrem-lhe vermelhas da mão.
Olha em frente, calha ser a direcção da porta, mas é difícil dizer se espera ver entrar alguém em particular. O tempo passa por ele – nas mãos, não nos olhos – e à sua frente continua aquele espaço vazio, até à barreira das costas seguintes, do homem seguinte, ali a metros mas que nada tem a ver com o homem atrás de si.
Não olha para as mãos, as mãos trabalham melhor quando não são vigiadas. O homem joga bem, joga de muito hábito. Joga melhor contra si próprio, mais habitual do que isso não há.
Roda as cartas com a rapidez de uma volta de canhão.
Parte. Dá. O homem tira uma carta. Volta-a ao contrário.
Não sei se morreu ali naquele momento – não vi que carta lhe saiu, e mesmo que visse, não adiantaria, só ele pode interpretar a própria morte. E quanto ao rosto, nem alívio nem medo.
O homem volta a pôr a carta no baralho e afasta-o. Chegou o croissant e o cappuccino.E o homem toma o seu pequeno-almoço.

11 maio, 2007

Chuva I

“Tu pareces infeliz e eu estou infeliz”, disse L. finalmente. Desde que nos tínhamos sentado na esplanada, chovia. Quem passasse pelo passeio em passo de chuva, pensaria que éramos impermeáveis. Nada mais errado: estávamos até encharcados por dentro.
O problema não era sequer sentir a frieza da chuva na pele do rosto e das mãos. A nossa infelicidade era toda interior, uma desilusão. Uma portuguesa e um sul-africano, tínhamos que admitir que tínhamos sido enganados. Todo o mês passado tinha sido uma mentira: afinal, ainda não é Verão.