30 abril, 2007

Whitechapel

A todo o comprimento, barracas de fruta – frutas grandes que deixam a Europa invejosa - e vegetais tão inebriantes quanto as frutas (uma libra o cesto); bancas de telemóveis e gadgets vários; vendas de tops a três libras três, e ainda, roupa interior ousada.
A toda a largura, mulheres carregam sacos, filhos, por vezes, marido, isto felinamente, que o véu não cobre os sentidos; raparigas chinesas em idade escolar interceptam quem passa com dvds de sotaque irreconhecível; mulheres bem vestidas esquecem-se de ser mulheres de saltos altos para não perder o metro, o autocarro.
E no meio das mulheres atarefadas, no meio dos homens mais calmos mas a ocupar mais espaço, no meio dos pregões, por entre as línguas, por entre os segundos e minutos e todos os ponteiros a circular, por entre os corpos de velocidade de impacto, de cuidado-não-páres, debaixo do helicóptero ensurdecedor que aterra a aflição no topo do hospital-alguém-morre-ali-ao-lado, no meio da rua sem espaço vazio – está um homem sentado. Sentado. Pendem-lhe três maços de Dunhill de uma mão, o resto está dentro do saco. Não levanta a voz, só os olhos, supremo e único justificável esforço. Tem pele cor-de-deserto, cor-de-clima-tropical, cor de todos os extremos; esse tom que se adquire como um estatuto, que se ganha como a sabedoria, primeiros com os anos, e depois, para além dos anos a passar, estes anos-fim à sombra inglesa.
Por entre 7/7, 12/12, no meio da rua sem pausa, tem pose de quem não imigrou mas se trasladou: de um qualquer lugar feito das pausas - para fumar, para conversar, até mesmo, para estar sentado; o lugar onde morreu, ou morre, ou morrerá, igual para o caso.
Se é possível saber que forma tem a pressa, é esta: em redor do homem sentado num banco de tamanho infantil, encostado a um poste para poder estar todo o dia, com a mão cheia de maços de cigarros mais baratos que ninguém compra, no meio de Whitechapel.

25 abril, 2007

Procurar casa

O agente imobiliário ainda não tinha chegado. Sentei-me num banco. Nesse instante, as crianças desataram a correr como pombos espantados, e eu fiquei sozinha com o rio. Vi o ângulo perfeito com que os aviões levantam voo, na outra margem. Vi o barco que chegava, provavelmente o primeiro da hora de ponta – veio dos arranha-céus a Oeste; e volta para buscar mais pessoas aos arranha-céus. Vi que para Este ainda não há arranha-céus, mas as gruas já lá estão. Vi um barco digno do rio, um desses que desliza tão pesado tão impossível de navegar que só pode ser uma aparição. Foi nesse momento que as crianças voltaram, correndo para o barco, pousando no muro, a apontar.
Quando o agente imobiliário chegou, eu já tinha vivido na casa que ainda não me tinha mostrado. Tinha aberto as janelas, porque até pelas traseiras entrará o ar puro das águas. Tinha, todos os dias, caminhado pela abertura da paisagem até este banco. Já conhecia de cor o horário dos barcos-comboios (nunca entendi o passatempo de ver passar comboios, mas ver passar os barcos, ah, poderia tornar-me numa fanática). Já sabia que aos dias de semana o pedaço de jardim é vazio como o mar; e que só se preenche quando acaba a escola. Já tinha escrito muitos textos, pensado tantos outros, sentada no banco, entre a linha do horizonte marcada-fim e uma praça onde as crianças se metem dentro de estátuas ocas até ao dia em que forem grandes, grandes demais para caberem inteiras dentro das brincadeiras.
Fui-me embora de comboio e não de barco; deixando para trás uma casa, e o agente imobiliário, de telefone e chave na mão, um pouco desconcertado.

23 abril, 2007

Amén

O autocarro parou num semáforo, e então li: “Aceite a oferta grátis de Deus hoje... Vida Eterna!”
Já que Deus não pede dinheiro, alguém pede por ele. Em Londres tudo se paga, e nem a Vida Eterna é excepção.
Mais tarde, era fim de dia já de noite, caminhava numa rua não muito longe da primeira igreja – em Hackney, onde existe uma forte comunidade de origem africana – e passei por outra igreja. Tinha a porta aberta, provavelmente para que as pessoas não abafassem com os gritos.
De costas, a multidão situava-se na América dos anos 50, com os seus chapéus paradoxais: severos e garridos como só os africanos são capazes. De frente, não vi, mas acredito que os rostos fossem deste tempo, deste sítio, deslocados dos seus chapéus amarelo, vermelho, verde.

22 abril, 2007

Domingo.

Acordei com o silêncio dos sinos, pois é hoje o único dia em que o silêncio nos acorda.
Acordei aqui, podia ter acordado aí, para o mesmo dia quieto.
Ao Domingo, não existe espaço.
Domingo é só tempo. Passa.

16 abril, 2007

pésnaterracabeçanoar

No outro dia fizeram-me o reparo de que devia pôr os pés na terra (quando escrevo, se bem que se podia aplicar a quase tudo, segundo a minha mãe), e eu fiquei a pensar nessa expressão. Nessa, e na outra: cabeça no ar.
Inevitavelmente, quando andamos com os pés na terra, andamos com a cabeça no ar - esse é o estado natural de estar no mundo.
A verdade é que, para escrever - gosto de esticar as pernas no sofá ou cruzá-las junto ao corpo na cadeira - tiro muitas vezes os pés do chão.

15 abril, 2007

Mexerico global

Primeiro, os tablóides. Compram e logo vendem medos, desgraças, ódios, celebridades, ou idealmente, celebridades com medos a quem acontece desgraças que suscitam ódios.
Segundo, os jornais de qualidade. Usam e logo vendem as mesmas histórias. Legitimam e dão seriedade aos medos, desgraças, ódios, celebridades, com aquela infantilidade das crianças que dizem asneiras e justificam-se: não fui eu que disse, foi o não sei quantos... Porque é preciso falar daquilo que se está a falar. E se os media de qualidade britânicos falam, então merece ser falado, e os jornais portugueses e de outras nacionalidades, falam também.
Terceiro, os leitores. É como as telenovelas e o Big Brother: toda a gente critica, toda a gente vê. E finalmente, toda a gente compra. E isto, leva-nos ao início.

Frase solta

Londres é um campo de deslocados de 1500 km2

13 abril, 2007

Expats

Foi uma palavra que ele usou: expatriados. Eu, tu, ele próprio. Expatriados sentados à mesa expatriada de um restaurante quase turco. Ele usou a palavra depois de termos concluído que nós, vós, eles, não éramos típicos – nem de portugueses nem de bósnios nem de húngaros. E foi então que disse:
Nós - os expatriados -, estamos aqui porque na nossa terra já éramos expatriados.

11 abril, 2007

Em branco

Olho para a janela – onde mais ter a esperança de ver a inspiração a cair do céu? O meu caderno não vira a página, branco desafiador.
Há estatísticas sobre os anos que gastamos numa vida a dormir. Nunca ninguém se lembrou de medir o tempo passado assim: em branco.

10 abril, 2007

Café-escritório

Já é hora de almoço. A esta hora, em Lisboa, os cafés põe as mesas e já ninguém tem lugar para sentar numa sala vazia.
É a mesma hora em Londres: 12h00.
Ninguém come. As largas chávenas de café estão dispostas de forma casual, como se fizessem parte do conjunto de objectos pessoais que se espalham numa mesa: um portátil, jornais (pessoais apenas enquanto os folheamos; pertencem a todos), um bloco de notas, um maço de folhas impressas.
Cada mesa é um escritório circular, uma redoma de trabalho; e um refúgio público, porque também a solidão precisa de companhia.
Neste café, escrevem-se guiões, desenham-se storyboards, sublinham-se livros, fazem-se listas, escrevem-se cadernos, reescrevem-se textos.
Não se trocam palavras, nem olhares. Não é preciso. A solidariedade está instalada. Reconhecemo-nos uns nos outros: freelancers, nos cafés livres – tão livres que estamos prisioneiros da liberdade.

07 abril, 2007

Para turismo de Páscoa em Londres:

“Estas 2 casas foram a
Embaixada de Portugal
1724-1747
O Marquês de Pombal
Estadista Português
Embaixador
1739-1744
viveu aqui”

É em Golden Square, números 23 e 24 (metro: Piccadilly Circus).

02 abril, 2007

Situação com M.

- Desculpa, mas tenho mesmo que ver o que se passa. - M. olha para a chamada perdida no telemóvel, apreensiva; oito da noite, repara (e também eu reparo, o café onde estamos subitamente esvaziou) - Não é normal o meu chefe ligar-me a esta hora.
Uma ordem para voltar ao escritório, uma reprimenda, uma má notícia, uma desgraça, uma catástrofe, há fogo – é o que M. espera desta chamada. Em Portugal, sim, telefonavam-lhe muitas vezes fora de horas.
O chefe atendeu do outro lado:
- Yes... Yes... Thank you. - M. sorri - Thank you!
M. desliga, e diz, perplexa:
- Era para me dar os parabéns pelo trabalho dos últimos dias.
M. chegou a Londres há dois meses e diz que voltará para Portugal. Quase todos os portugueses que conheço aqui dizem que vão voltar para Portugal. Vão ficando...

01 abril, 2007

Contribuiçao para um manifesto de 1 de Abril

Proponho que a 1 de Abril, em vez de se contar mentiras, se conte verdades que parecem mentira. Verdades-boquiabertas, verdades-quase-nada, verdades-de-ficar-pensando-não-é-assim-tão-mau.
As verdades-que-parecem-mentira do meu 1 de Abril em Londres:
- meio do dia, e ao sol está-se bem de manga curta
- não há dúvida: o sol faz as pessoas felizes
- não há dúvida: a felicidade faz as pessoas bondosas
- o condutor do autocarro piscou-me o olho, sorriu, e deixou-me ir sem pagar bilhete (qualquer pessoa que viva em Londres, vai ficar convencida que é uma mentira de 1 de Abril, garanto que não, é uma verdade que parece mentira)
- daqui a pouco chegam visitas de Portugal, e será como se tivesse eu viajado e, hoje, chegado a casa